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23 de set. de 2014

Cara Limpa, Ficha Suja: por Quim Bcukalnd

A eleição deste ano é de fato peculiar ganhando contornos de dramaticidade dignas de trilogia cinematográfica, daqui para frente tudo será decisivo e nesse tabuleiro muita gente anda perdendo a cabeça, afinal de contas às manifestações de junho não foram esquecidas, elas demonstraram o surgimento de um novo ser diferentemente politizado, que não troca direitos coletivos por algumas dezenas de telhas. Nesse ano decidi olhar com mais atenção para esse período de campanha e tenho concluído que tal momento é mais importante que o próprio dia do voto.

De novelas e notícias: por Sávio Dias.

Jairo é pobre. Sabe aquele jeito pobre? Pobre de toda maneira. Não tem cultura, nem falar ele sabe. Sua esposa vive reclamando para ele parar com as gírias, principalmente no seu lugar de trabalho, que afinal, é lugar de “granfino”. Ele, mesmo vestindo roupa de rico, já parece pobre, pois pra tirar esse seu ar sujo e maltrapilho é preciso mais que uma simples roupa cara, é preciso nascer de novo.

Sua pele é aquela típica cor de pobre, você sabe? Meio escura a totalmente escura? AH!Sabe sim. Ele destoa de todo mundo que o cerca. Onde ele aparece dá logo pra saber:“aquele é um pobre” e todo mundo já vira a cara e começa a fazer cochicho de medo eespanto. Gentezinha tudo bonita, branca, bem vestida, avisando pelos seus atos queaquele não é lugar de Jairo.

Não basta ser pobre, ele também é bandido. Ele não cometeu crimes. Aliás, um apenas,é pobre (e preto, coisa que é intrínseco, né?!). Quando o viram já sabiam, ele é ummarginal. Bandidão, sabe? Daqueles perigosos. Ele “puxa um”, ele deve até já termatado, pois de pobre preto não se espera coisa menor.

Ele até parece ser real, mas não é. Ele é personagem de novela. O que torna isso dramático, é que ele é a expressão do que uma parte considerável da população montarem relação aos seus estigmas de pobre e negro. Associado a isso, sempre tem um sem cultura, analfabeto, marginal, violento e tantos outros adjetivos que não são nem umpouco bem vistos. Ele foi construído numa novela das 9, em que grande parte do que écriado é a partir da classe média alta do Rio de Janeiro.

É engraçado falar do Jairo, que é personagem da novela das nove, pois a atração anterior a ela é o principal jornal da emissora. Nele, o pobre e preto aparece sendo morto na favela em fatos envolvendo a polícia. A mesma imagem criada em ferramentas como a novela são utilizadas para discernir quem é bandido ou não para grande parte da polícia: ser preto e pobre já é meio caminho andado para qualquer investigação dizer“tinha envolvimento com traficantes”, se o sujeito morar na favela, a investigação logodirá “escondia traficantes”.

Cenas de crimes modificadas, polícia arrastando pessoas em viatura, dançarino sendomorto misteriosamente em confronto entre polícia e traficantes, idosa protegendo seuneto e morrendo em troca de tiro. Várias versões para qualquer fato envolvendo apolícia, e tudo isso é normal e minimizado em toda notícia. Basta ver a reação dodelegado que investiga o caso do DG, ao comparar a primeira versão da PM que diziaque seu corpo apresentava escoriações decorrentes de queda, e depois, após divulgaçãode foto que o corpo claramente mostrava uma marca de tiro, com sangue espalhado nacamisa do dançarino, a mesma PM muda a versão para “morto por bala perdida”, eprovavelmente ela deverá mudar para um “executadoo” em breve, já que as últimasnotícias afirmam que ele foi morto a pouca distância.

O critério é o mesmo, usar a polícia na favela tem que vir municiado de uma base dedistinção de quem é bandido ou não, e essa base está nos estereótipos criados, e não épreciso ir longe nas notícias para ver como esse critério é utilizado, e o caso Amarildo éo mais aterrorizante. Ele que era favelado, pobre, preto, foi torturado e assassinado edurante muito tempo a localização do corpo foi segredo e fez ecoar nas redes sociais afrase “onde está Amarildo?”. O que é contraditório é que quem gritou essa frase foramas mesmas pessoas que criaram o estereótipo do Jairo da novela.

Depois o povo se assusta se Jairo sobe num ônibus, drogado para se isentar do que éreal, começar a falar que vai matar todo mundo e virar notícia para todo mundo com elematando algum inocente, que sempre concordou com os cochichos dos “não pobres” de que nenhum lugar era lugar do Jairo, ou do “Alê”, ou mesmo do Sandro, ou de qualquer um de nós, pois somos pobres e pretos. Para grande parte da polícia, sua principal função ainda está longe de ser ao menos refletida, “proteger a população”, se resumindo a prender apenas. E está longe o dia que compreenderemos que os próximos a estamparem as notícias do jornal poderemos ser nós, como novos Jairos, DG’s ou Amarildos.